O professor Rubens Belfort Junior. As mães têm a ilusão de que a ciência trará soluções rápidas (Foto: Anna Carolina Negri/ÉPOCA)
Quando o vírus zika surgiu como suspeito do aumento de casos de microcefalia no Nordeste, o oftalmologista Rubens Belfort Junior, professor da Universidade Federal de São Paulo, desconfiou que muitos dos bebês jamais enxergariam. É o que pode acontecer quando outros agentes infecciosos agridem os olhos. Belfort Junior propôs um estudo a ex-alunos que atualmente atendem essas crianças em hospitais de Salvador e Recife. Em dezembro, ele viajou para o Nordeste para examinar os bebês. Viu de perto o desespero das mães em busca de respostas que a ciência ainda não é capaz de dar. A investigação confirmou a hipótese levantada por ele.
Há duas semanas, o grupo revelou a primeira evidência mundial de que bebês nascidos com microcefalia atribuída ao zika podem sofrer de graves dificuldades de visão. Segundo o estudo publicado no respeitado JAMA Ophthalmology, dez dos 29 pacientes incluídos na pesquisa apresentam danos na retina e no nervo óptico. Em 2014, Belfort Junior se tornou o primeiro brasileiro a receber o prêmio internacional de prevenção à cegueira, concedido pela Associação Americana de Oftalmologia. Era o reconhecimento ao trabalho que realiza com populações ribeirinhas da Amazônia há três décadas. Oferecer respostas e recursos às vítimas da microcefalia é seu novo desafio.
ÉPOCA – As lesões oculares verificadas nos bebês com zika não podem ter sido provocadas por outras doenças, como sífilis, rubéola ou toxoplasmose?
Rubens Belfort Junior – Não existe doença oftalmológica conhecida que cause as lesões que observamos. É como olhar a Lua e o Sol. Os dois são redondos, mas têm aspecto e brilho diferentes. Esses pacientes têm lesões na retina e em outras estruturas, como o nervo óptico. É muito diferente dos danos provocados por outras causas. Além disso, fizemos exames de sangue nas mães e nos bebês para excluir a possibilidade de infecção por outros vírus. Assim que publicamos o artigo, recebi um e-mail do presidente da Associação Mundial de Oftalmologia. Ele dizia que as fotografias de nosso trabalho são irrefutáveis. Estamos diante de outra doença.
ÉPOCA – Todas essas crianças serão cegas?
Belfort Junior – O que leva à cegueira é o local da retina onde a lesão ocorre. Se for na periferia da retina, a visão pode ser normal. Se ocorrer na mácula (a região central da retina) ou entre a mácula e o nervo óptico ou no próprio nervo, a visão fica muito ruim. Esses bebês têm lesões graves. Em alguns casos, nos dois olhos. Não podemos tirar as esperanças das famílias, mas sabemos que algumas dessas crianças jamais vão enxergar.
ÉPOCA – Há alguma coisa que as famílias podem fazer para compensar as dificuldades de visão?
Belfort Junior – É uma situação complicada. No Recife, os profissionais estão tentando estimular as áreas periféricas da retina. Existem atividades para a audição que podem ajudar a compensar a cegueira, mas talvez essas crianças não tenham uma audição boa. Talvez o cérebro também não funcione bem. A sociedade não vai ter condições de bancar o custo de tudo isso.
ÉPOCA – O que o senhor sentiu ao examinar esses bebês?
Belfort Junior – Fiquei tocado pela solidariedade e pelo carinho dos profissionais de saúde que estão lidando com esses pacientes de perto. E também pelo desespero das mães. Algumas não conseguem falar. Outras estão em estado de choque. Muitas procuram algum recurso desesperadamente, na ilusão de que teremos algo a oferecer em breve. É um sacrifício enorme.
ÉPOCA – Não haverá o que oferecer tão cedo?
Belfort Junior – Esta crise vai fazer a ciência andar mais rápido, mas tudo precisa ser feito com muita prudência. Não adianta o presidente Barack Obama dizer que em breve teremos uma vacina. Isso vai demorar para chegar ao mercado. A ideia de produzir um soro para as grávidas é igualmente complicada. Muita pesquisa de toxicidade será necessária. A aprovação pelas autoridades regulatórias não será fácil. Vão descobrir uma droga para matar o vírus? O que mais o remédio vai matar, além do vírus? Tudo é muito complexo.
ÉPOCA – A Organização Mundial da Saúde (OMS) acertou ao declarar emergência?
Belfort Junior – A OMS tem uma agenda política. É melhor fazer o alerta, e depois dizer que a situação não era tão grave, que o contrário. É preciso tomar cuidado com o alarmismo. Com exceção das mulheres grávidas, não há evidência de que o zika seja alguma coisa tão perigosa assim. A dengue é muito pior. O vírus chikungunya também parece ser. No Nordeste, a zika era considerada uma dengue leve. O paciente dizia: “Tive dengue e sofri muito”. Outro respondia: “Puxa, eu tive sorte. Peguei só o zika. Fiquei mal uns três dias e passou”. Ainda há muitas dúvidas. Será que vamos descobrir que essas crianças tiveram zika e dengue ou zika e chikungunya? Será que pegar os dois vírus ao mesmo tempo complica as coisas e leva à microcefalia? Ninguém sabe nada.
ÉPOCA – O zika pode vir a provocar lesões oculares em adultos?
Belfort Junior – Nenhuma das mães que examinamos teve qualquer lesão nos olhos, nem relatou problemas oculares durante a gestação. Nem mesmo conjuntivite. Temos outra preocupação em relação aos bebês. Talvez alguns tenham lesões subclínicas. Pode ser que as lesões só apareçam mais tarde. Isso acontece em muitas outras doenças infecciosas.
ÉPOCA – O governo federal está lidando com esta crise de forma adequada?
Belfort Junior – O Ministério da Saúde está tão desestruturado há tanto tempo que a gente pode esperar qualquer coisa de ineficiência por parte deles. O zika escancarou a crise da saúde brasileira. A desarticulação é enorme. O governo falha na interação com a comunidade científica e não consegue estabelecer prioridades e linhas de financiamento. O que estamos vendo é a consequência de uma política errada. Os hospitais públicos não fazem direito nem a sorologia básica. Os profissionais que estão lidando com esses bebês sofrem com falta de equipamentos e insumos. Não é fácil conseguir testes laboratoriais rapidamente para excluir a hipótese de infecção por outras doenças. Faltam câmeras fotográficas de exames de retina, aparelhos de ultrassonografia, entre tantas outras carências.
ÉPOCA – O ministro Marcelo Castro afirmou que não faltarão recursos para conter a expansão do vírus zika. O que o senhor pensa sobre isso?
Belfort Junior – Não adianta o governo federal dizer de forma genérica que está prestando toda a atenção ao problema. Quanto de dinheiro o governo está colocando nisso? Esses recursos saíram de onde? Da hepatite, da obstetrícia, da catarata, do câncer de próstata? Qual é o milagre? É muito bom ver que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) começa a anunciar editais de pesquisa sobre zika. Sentimos falta disso desde o início da crise. Os pesquisadores querem participar, mas faltava conhecer as regras. Tem de ser tudo detalhado, no papel e com transparência. Problemas assim a gente só consegue resolver com os diferentes parceiros na mesma mesa. Os parceiros são os pacientes, os profissionais de saúde, o governo, a imprensa. Toda a sociedade. Sem transparência, nada se resolve.
ÉPOCA – Epidemias de dengue (e agora de zika) escancaram a deficiência crônica dos serviços básicos de saúde. Há saída no horizonte próximo?
Belfort Junior – A sociedade precisa exigir uma reorganização geral da saúde. Não apenas dos serviços de urgência e emergência. O Brasil precisa ir muito além disso. Estamos cansados de ver na TV sujeitos com perna quebrada na porta do hospital. A população fica com a ilusão de que o problema é apenas esse. É muito maior do que isso. Faltam controle adequado do vetor das doenças e estrutura de pesquisa. Estamos numa fase em que o trabalho da imprensa é fundamental. É ela quem ajuda a circular a informação e quem pressiona para que todo mundo trabalhe bem. Mas a imprensa também deve ter a responsabilidade de não desfocar a atenção. Se começa a falar muito em coisas distantes como vacina e terapia intrauterina, as pessoas não percebem que o foco principal deve continuar sendo a porcaria dos terrenos cheios de criadouros de mosquito. O que tem de ser feito? Acabar com o mosquito e investir em pesquisa. A ciência é a abordagem racional para resolver os problemas da sociedade. Para isso, é preciso ter dinheiro e organização. Quanto de dinheiro extra a presidente Dilma deu ao Ministério da Saúde para lidar com o zika? Não pode ficar só no blá-blá-blá. É preciso saber agir.